da ESPN -Brasil (por Lúcio de Castro)
Nem a barbárie dos anos de chumbo apagou algumas histórias incomparáveis
de coragem, dignidade e valentia. Boa parte delas foi escrita por mães, avós e
mulheres de vítimas da truculência. Aqui não há espaço para dúvidas: desafiadas
em seus instintos mais primitivos, tais como proteger a cria, abrigá-las das
intempéries e dos inimigos predadores, descobriram coragem que jamais haviam
imaginado.
Mulheres-coragens como Zuzu Angel, já citada por aqui. Destemida em sua luta pelo filho, capaz de enfrentar o mundo. Outras tantas foram assim, por seus filhos, netos ou maridos. Dona Iramaya Benjamin, a mulher que desconheceu o medo por seus filhos... Dona Helga, com seus três filhos pendurados no colo batendo de porta em porta nas masmorras da ditadura brasileira atrás de seu marido... Outras tantas...O capítulo “Argentina”, que abriu ontem “Memórias do Chumbo – O Futebol nos Tempos do Condor” está cheio delas. Maria Ester, a avó inansável de Mariana Zaffaroni, nenhuma luta pode ser mais nobre. A história dessas mulheres compõe um dos mais belos capítulos da história da humanidade, em sua coragem sem limites, desconhecida até por elas.
Uma dessas mulheres espetaculares foi uma das protagonistas do programa de estreia. Glorinha Paranaguá é um nome muitas vezes associado a socialites e “madames”. Poucas coisas podem ser mais equivocadas. Provavelmente o equívoco era por mim cometido também. Até conhecer a história dessa mulher. “Muita gente acha que sou dondoca”, sorriu ao acabar seu depoimento, diante do meu visível estado de quem se refaz com a história contada por ela.
Glorinha Paranaguá tinha tudo para ser uma “dondoca” realmente. Mulher de embaixador, frequentadora dos melhores salões do mundo...Até que um dia seu filho Paulo Antônio é preso na Argentina. No auge da ditadura Videla. É aí que começa uma das mais impressionantes histórias de luta sem tréguas de uma mãe.
Como o marido precisava seguir cumprindo suas funções diplomáticas no mundo árabe, Glorinha não teve dúvidas: se mudou para o inferno em que havia transformado-se a Argentina. Em nome do filho. Por 6 meses percorreu os mais abjetos porões da ditadura daquele país sem uma informação. O filho seguia incomunicável em La Plata, sinistra masmorra argentina. Ia para baixo e para cima, sabendo que as condições de segurança eram zero. Seguida muitas vezes. Sem jamais medir esforços. Intercalando com vindas ao Brasil para obter apoio. Como conta, vendo o cinismo de alguns símbolos da ditadura bater a porta em sua cara. Jamais desistiu. Viu o Bispo de Buenos Aires sair correndo pelos fundos da catedral para não recebê-la. Sem desistir. Bateu em todas as portas. Sempre indo ao inferno para ver o filho, já localizado.
Nas visitas, frequentemente via mães companheiras daquele suplício avisadas de que o filho já não estava mais ali. Não estava mais em lugar algum. Seguia sua luta. Nunca pensou nos salões que frequentava nessas visitas. “A cela horrorosa, eu podia ficar lá no fundo. Ele tinha emagrecido horrores, pele e osso. Filho a gente faz qualquer coisa, dá uma coragem, coisa impressionante. Não imaginei que a gente pudesse chegar a isso, mas a gente chega. E coragem pra enfrentar essa gente toda”.
Seu depoimento é marcante. Batidas todas as portas, recorre a uma última ideia: João Havelange, o presidente da FIFA. A Argentina que seria sede estava ameaçada pelo escândalo de ser palco de tortura e genocídio. Diante do pedido da mãe-coragem, cujo pai tinha sido presidente do Fluminense e portanto respeitado por Havelange, o mandatário da FIFA faz um acordo com Videla. O filho de Glorinha e a namorada seriam soltos e ele garantia a realização da copa. Assim foi feito. Nada mais legítimo do que a ação de uma mãe desesperada. Salvou a vida do filho pela sua força inesgotável.
A ação de Havelange seria uma das poucas a serem louvadas nesses anos todos, não fosse a sequência dos fatos: o genocídio que ali ocorrria, encoberto pela Copa do Mundo. O homem que diz não misturar política e futebol fechou os olhos para todo o resto. Liguei para o escritório de Havelange sem retorno.
Trinta e quatro anos depois, o acordo de Havelange e Videla é confirmado nesse capítulo incial da série. O argentino Pablo Llonto havia contado a história em seu “A Vergonha de Todos”, no entanto sem confirmação das partes. Em entrevista para a Folha de São Paulo de 26 de junho de 2008, Havelange confirma o encontro com Videla e o pedido pela libertação do filho de Glorinha Paranaguá. E omite a contrapartida na entrevista para a Folha. (O esclarecimento sempre vale para que os pobres de alma que vivem a pensar tudo como uma corrida, um manual de jornalismo e se arvoram a mais responsáveis do que os outros. Não são. E não entenderam nada. Recordando Niemeyer, “muito mais importante é a vida”. Mas se por acaso a confirmação dessa história for anterior, não fará a menor diferença. O bom disso tudo é ter contado tudo isso. Nunca serão...).
Quando fui gravar com Glorinha Paranaguá, sua primeira fala foi sobre os trinta e quatro anos sem contar aquela história. A segunda foi um doce pedido para que a entrevista acabasse antes do início de “Avenida Brasil”, então bombando nas telas. Guardarei sempre a lembrança do depoimento daquela mãe-coragem. Provavelmente nem ela entenda que foi capaz de toda via-crucis que percorreu. De toda coragem. Não deixa de rir um pouco provocativa ao ironizar que “pensam ser ela uma dondoca”. Afinal, podem ter existido mulheres guerreiras naqueles anos. Tal e qual Glorinha Paranaguá.
Guardarei para sempre também os depoimentos de Mariana Zaffaroni, que abre o capítulo. Conto e reconto a história por aí como quem quer botar para fora a síntese de um tempo bárbaro para que se tenha a dimensão da estupidez. Guardarei para sempre também a expressão de Ercilia Pensado, que toda quinta-feira está na Plaza de Mayo exigindo a verdade sobre o desaparecimento de seu marido há mais de três décadas. Guardarei para sempre o olhar de Cláudio Morresi, ex-jogador, que teve um irmão assassinado. Nunca vi olhar mais triste.
Guardarei para sempre o depoimento de Graciela Daleo. Tinha tanta coisa para entrar no capítulo... Depoimentos de jogadores, histórias inacreditáveis. Nunca consegui cortar o depoimento de Graciela Daleo que encerra esse capítulo “Argentina”. Vinha, voltava da edição, mais minutos de cortes eram necessários, para o desespero de Fábio Calamari e Alê Vallim. Ali nunca consegui cortar. Nunca parei para pensar se era a opção mais certa. Nem irei parar. Se outras coisas deveriam entrar. Quem sabe mais depoimentos dos jogadores...Tinha tanta coisa... Não era possível cortar aquele último depoimento. Pelo menos eu não conseguiria. O retrato surreal de um tempo surreal. Uma final de Copa sendo jogada a 700 metros de um campo de concentração...Nunca mais!
Ps- “Memórias do Chumbo – O Futebol nos Tempos do Condor” prossegue hoje com “Chile. Amanhã com Uruguai e encerra na sexta com Brasil. Argentina e os outros terão reprises.
Ps2- Os versos que seguem abaixo são do dilacerante poema de Ana Maria Ponce, a Loli, 26 anos, mãe de um filho de 3. Companheira de Graciela Daleo no campo de extermínio da ESMA. Escrevia escondida como podia. No começo de 1978, foi chamada pelos oficiais da ESMA. Sabia que era a senha para a morte. Sempre que acontecia, o convocado não voltava. Conseguiu se despedir da companheira de prisão. E passar escondida um pacote com escritos. Poemas, anotações, relatos daqueles dias... Graciela guardou escondida e conseguiu botar para fora da ESMA os poemas de Loli. Pela coragem de Graciela ficou a memória de Loli. Que partiu algemada diante do olhar das companheiras. Uma companheira relatou a cena: “Foi com dignidade. Caminhando como uma rainha. Apesar dos grilhões. Com seus olhos claros, a pele branca e mais livre do que seus assassinos”.
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POEMA DE ANA MARIA PONCE (Loli)
POEMA DE ANA MARIA PONCE (Loli)
(vítima do campo de extermínio da ESMA)
Quero saber como se vê o mundo
me esqueci de sua forma,
de sua insáciável boca,
de suas destruidoras mãos,
me esqueci da noite e do dia,
me esqueci das ruas percorridas.
Quero saber como é o mundo,
não recordo dos rostos,
nem das árvores, nem das luzes,
nem das fábricas, nem das praças,
nem da dor lá fora,
nem do riso de depois.
Quero saber como se vê o mundo,
faz tanto que não estou,
faz tanto que meus pés não se cansam pelos passeios,
faz tanto tempo que meus olhos não se queimam com a luz,
faz tanto tempo que sonho
a inapreensível sensação de liberdade,
faz tanto, mas tanto,
que não tenho meu alimento natural,
de vida, de amor, de presente,
e estou, apesar de tudo isso,
apesar de não acreditar,
estou juntando umas palavras,
que me deixem recordar
como poderia ver o mundo...
Ana Maria Ponce (Loli)
Quero saber como se vê o mundo
me esqueci de sua forma,
de sua insáciável boca,
de suas destruidoras mãos,
me esqueci da noite e do dia,
me esqueci das ruas percorridas.
Quero saber como é o mundo,
não recordo dos rostos,
nem das árvores, nem das luzes,
nem das fábricas, nem das praças,
nem da dor lá fora,
nem do riso de depois.
Quero saber como se vê o mundo,
faz tanto que não estou,
faz tanto que meus pés não se cansam pelos passeios,
faz tanto tempo que meus olhos não se queimam com a luz,
faz tanto tempo que sonho
a inapreensível sensação de liberdade,
faz tanto, mas tanto,
que não tenho meu alimento natural,
de vida, de amor, de presente,
e estou, apesar de tudo isso,
apesar de não acreditar,
estou juntando umas palavras,
que me deixem recordar
como poderia ver o mundo...
Ana Maria Ponce (Loli)
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