Por
Magda Almeida
Do site Pragmatismo Político
A barca chegou, foi embora e eu fiquei. Buscamos um banco ali por
perto e ouvi sua história ou o que dela ele ainda se lembrava. Não conhecera
seus pais, fora adotado por uma tia e cresceu correndo atrás da familia
biológica, que nunca encontrou. Na juventude, aprendera a ler e a escrever com
a ajuda de uma professora para quem fazia pequenos serviços domésticos. Foi
arrumando a biblioteca de um escritor famoso que conheceu o prazer da leitura
dos jornais e dos livros.
Nunca se casara, namorara pouco, era reconhecidamente um
solitário. Mas queria muito ser jornalista. Conseguiu terminar o segundo grau,
passou no ainda fácil vestibular para a PUC e, melhor ainda, deram-lhe uma
bolsa integral. Trabalhar num grande jornal não era apenas o sonho da elite
intelectual de então. Anselmo, negro, pobre, de pais desconhecidos, também sonhava com isso.
Martírio e esperança
O nome hoje é bullying, mas pode-se chamá-lo por vários outros nomes,
alguns aqui impublicáveis. Dizem os psicanalistas que é coisa de criança e adolescentes,
geralmente. Nem sempre. A maldade humana nunca conheceu seus próprios limites,
atestam a História e o que dela se conhece. Muitas vezes, corri atrás de
Anselmo, para tirar de suas costas bilhetes maldosos ali pregados e que ele
corria o risco de levar para a rua. Disfarçava, dizendo que estava tirando pó
do casaco. Ele ria, mas acreditava ou fingia que.
Vez por
outra, mandavam-no à sala dos copidesques, sob pretexto que estava sendo ali
chamado. Território proibido para os não iniciados, era corrido de lá de forma
humilhante. Um dia descobri porque chegava todo amassado à redação: dormia
na rua, em qualquer banco, em qualquer praça. Tomava banho no próprio jornal,
usando o banheiro do pessoal da limpeza. Com o tempo percebi
que, à medida que as “brincadeiras” aumentavam, aumentava, também, o imenso
sentimento de rejeição que o atormentava, traduzido nas piadas e nas maldades
miúdas cada vez mais criativas.
Algumas vezes tinha que ir buscá-lo no Simpatia, um bar das
proximidades, muito frequentado pela galera das redações localizadas no centro
da cidade. Os rapazes da limpeza o empurravam chuveiro abaixo, enquanto eu e
Fontes providenciávamos um reforçado café. Em algumas situações não o deixava
chegar à redação, só pioraria seu estado emocional. Devolvia-o ao mundo. Um dia
sumiu.
O tempo passou, a madrugada chegou, a família se apavorou porque
eu não chegava. Marido e filha já me procuravam, temendo o pior. Mas lá estava
eu, ouvindo o que para todos era uma esquisita conversa entre uma provável
maluca e um mendigo. Anselmo não suportara a vida como ela se apresentava
naquela conturbada década de 1960. Fora humilhado acima do que lhe seria
suportável, descobrira que não tinha estrutura emocional para tanto. O esforço
de alguns poucos também não fora suficiente para ajudá-lo. O passado estava
sempre presente; o álcool, sua única droga, era seu principal alento. Comia o
que lhe davam, quando lhe davam. Conhecera a poesia e, quando não estava com
sua latinha em busca de alguns trocados pelas ruas do centro da cidade, sentava
no banco e escrevia.
Pedi para ver. Ele tirou de um envelope, que um dia fora branco,
um punhado de papéis com alguns incompreensíveis garranchos escritos a lápis.
Não deixou que eu levasse. Eram garranchos, ele reconhecida, mas era tudo que
sobrara de uma época em que o martírio se juntou à esperança. Venceu o
primeiro.
O que faz a diferença
Anselmo morreu e foi enterrado como indigente.
Ainda o procurei lá pela Praça 15 e arredores, mas nunca mais o encontrei.
Soube pelos outros mendigos da área que havia morrido e estava enterrado,
provavelmente, em um cemitério localizado em Ricardo Albuquerque, subúrbio da
Zona Oeste do Rio, e único em todo o estado voltado para o sepultamento de
indigentes e de cadáveres produzidos pela polícia. Sofria de diabetes em grau
elevado, que nunca tratou. Quando ainda estava no JB, várias vezes lhe
perguntei a quem deveria procurar, caso adoecesse. Fugia da resposta, como se o
assunto fosse um doloroso tabu.
Infelizmente, casos como o do Anselmo não são raros em nossas
redações, embora o dele tenha sido o mais trágico, pela forma como era
humilhado publicamente. Meus heróis eram de barro e Anselmo, entre outros, me
mostrou isso. Também não foi o único que socorri em situação desesperadora. E
nem sempre o álcool foi o maior problema. A droga fez muitas vítimas também. A
Aids levou amigos e colegas queridos. Que tipo de ajuda poderiam receber de
seus próprios pares e das empresas onde trabalhavam? Muita, mas eram ignorados,
além de ridicularizados. Faziam parte, como numa espécie de catarse coletiva,
daquela porção folclórica das redações.
Por que nada se publica a respeito? De que e de quem temos medo?
Por que essa blindagem em torno de uma realidade que ninguém desconhece? Para
nos manter como heróis perante essa garotada desinformada que sai das
universidades sem a menor noção para onde estão indo? Por que posamos de
deuses, se não passamos de seres humanos fragilizados por um trabalho que, se
numa ponta nos gratifica, na outra nos mata aos poucos?
O jornalismo brasileiro não precisa de heróis. Ele precisa, isso
sim, de profissionais qualificados, éticos, menos comprometidos com a fama e
mais com o bom sentimento do dever cumprido, em todos os níveis.
Principalmente, mais coerentes com aqueles princípios que fazem a diferença
entre os bons e os maus.
Ouvi de um grande brasileiro uma frase que marcou a minha vida em
muitos sentidos: a gente conhece os bons não tanto pelo que fazem, mas
justamente pelo que NÃO fazem.
Olá Marcelo
ResponderExcluirBelo texto, tirei um tempo pra ler hoje, feriado...
A relação do racismo com o Bullyng é valida desde que a pessoa em questão se veja em detrimento de suas atividades por meio desse, que foi o caso de nosso amigo estudante de jornalismo...
Isso sempre está relacionado, de uma maneira ou de outra, já que o princípio do bulliyng é diminuir o outro
O jornalismo de hoje está um pouco fora de foco quando se diz respeito a defender isso se colocando numa posição e esclarecendo, quer mais poleminzar
abraço!