da página Revolucionários Eternamente (Facebook)
O jornalista Mario Augusto Jacobskind faz detalhado
relato da tentativa da família do Presidente João Goulart de exigir, do governo
dos EUA, reparação pelo Golpe de 64. O processo se arrasta na Justiça
brasileira, mas eles não desistem. A idéia de processar os EUA pelo golpe
surgiu quando do lançamento do livro do ex-Embaixador americano no Brasil,
Lincoln Gordon, onde ele se vangloriou que conspirou e conseguiu derrubar o governo constitucional de Jango. (OM)
Quando faltam menos de um ano e meio para que o golpe civil militar de abril de
64 complete 50 anos, a Justiça brasileira está para decidir uma ação da família
do presidente deposto João Goulart, conhecido como Jango, que poderá resultar
na colocação dos Estados Unidos no banco dos réus. 0 tema é complexo e se
arrasta desde 2002 nas mais variadas instâncias da Justiça e foi iniciada pelo
advogado José Roberto Rutkoski e agora está a cargo de Trajano Ribeiro e
Daniel Renout da Cunha.
Para se entender melhor os meandros da ação, é necessário que os interessados
conheçam os pormenores de uma linguagem jurídica complexa em que se destacam
termos como “atos de gestão e de império” por parte do governo estadunidense.
A história da ação começa em 2002, depois de uma entrevista do ex-embaixador
Lincoln Gordon, ao lançar em São Paulo e no Rio de Janeiro o seu livro Brasil
Segunda Chance: A Caminho do Primeiro Mundo, admitindo o patrocínio oculto da
quebra da ordem constitucional mediante exemplos como o fato de que a CIA
dispôs 5 milhões de dólares, a partir de 1962, com o financiamento de
candidatos ao Congresso que desfraldassem a bandeira do anticomunismo e
combatessem também o nacionalismo.
Era o tempo do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e do Instituto
de Pesquisas Econômicas e Sociais (1PES), que tinha como um dos principais
coordenadores o então Coronel Golbery do Couto e Silva, um dos principais
mentores do golpe de 64.
Com esta admissão, os filhos de Jango, João Vicente e Denise Goulart, bem como
a viúva, Maria Tereza, tomaram a iniciativa de processar pela Justiça
brasileira o Estado norte-americano como um dos responsáveis pelo golpe que
afastou do poder o presidente da República.
SOBERANIA NACIONAL
Inicialmente, segundo explicou João Vicente, o objetivo da ação não visava
propriamente indenização, apenas uma ação afirmativa. 0 pedido sempre foi de
indenização, mas não tinha nenhum valor fixado porque era uma reação política
e de defesa da soberania, mas a Justiça, mais precisamente a 10a Vara Federal
do Rio de Janeiro, exigiu que fosse fixado o valor das perdas que a família
teve em decorrência do afastamento forçado de Jango da Presidência e
posteriormente o exílio no Uruguay.
Foi realizada uma perícia para apurar o valor da evolução patrimonial. Com base
na declaração do Imposto de Renda de 1963 do presidente deposto, a qual foi
somada uma quantia referente aos danos morais e o valor da reparação, acabou
sendo estipulada em cerca de 4 bilhões de reais.
A 10a Vara Federal julgou extinto o feito com fundamento na impossibilidade
jurídica do pedido com base na imunidade absoluta de jurisdição do Estado
estrangeiro cujo recurso acabou sendo encaminhado para o Superior Tribunal de
Justiça (STJ), onde, apesar das sucessivas negativas da maioria dos Ministros,
os advogados ainda tentam colocar o Estado norte-americano no banco dos réus.
No terreno jurídico, segue sendo travada uma batalha complexa e que para
entendê-la é necessário também analisar os meandros da política externa
estadunidense atual e do período da Guerra Fria.
0 financiamento pela CIA da campanha para a derrubada de Jango, que não se
limitou na verdade aos cofres do IBAD ou do IPES, foi inspirada no que
aconteceu na Itália logo após o fim da II Guerra Mundial. Preocupados com a
possibilidade de uma vitória eleitoral do então poderoso eleitoralmente
Partido Comunista Italiano (PCI), a CIA e demais organismos do Estado
norte-americano despejaram milhões de dólares para beneficiar, sobretudo
partidos como o da Democracia Cristã e demais opositores do PCI. A ofensiva
anticomunista deu certo e impediu a vitória dos comunistas, então agrupados
unitariamente em um partido forte sob a liderança da figura legendária do
secretário geral Palmiro Togliatti.
Em uma reunião realizada a 30 de julho de 1962 entre o então Presidente John
Kennedy e o embaixador Lincoln Gordon, o assessor presidencial Richard Goodwin
aventou a possibilidade de que “talvez devêssemos pensar em golpe num futuro
próximo (no Brasil)”.
Na mesma entrevista sobre os gastos da CIA com o esquema de desestabilização do
governo constitucional brasileiro, embora confirmando o que disse Goodwin,
Gordon procurou minimizar o fato declarando que a opinião do assessor não foi
considerada naquele momento, o que na prática não se confirma pelo teor dos
documentos secretos desclassificados em 2004 pelo Departamento de Estado
norte-americano.
Segundo o próprio Lincoln Gordon, foram gastos pela CIA 5 milhões de reais, o
equivalente hoje a cerca de 50 milhões de dólares ou 100 milhões de reais.
MAIOR TEMOR
Na verdade, temendo que no Brasil se consolidasse um governo nacionalista,
Kennedy chegou a dizer que o número de comunistas no Brasil é irrelevante na
cena política e que esse fato serviria apenas para atacar o governo de Jango.
Kennedy temia eventuais ameaças aos interesses de empresas norte-americanas,
sobretudo com a possibilidade, já então concreta, da aprovação da lei de
remessa de lucros. Ele não pensou duas vezes em executar o que pouco tempo
antes o Conselho de Segurança Nacional estadunidense sob o governo de seu
antecessor, o Presidente Dwight Eisenhower, aprovou, ou seja, a resolução sobre
as “covers actions” (ações encobertas) contra a ordem jurídica de outros
países: “as operações deviam ser secretas e permitir que o governo pudesse
negar, com foros de plausibilidade, sua participação nas mesmas”.
Kennedy, portanto, seguindo essa prédica, não poupou esforços no sentido de que
em algum momento ocorresse a derrubada de Jango, o que hoje é confirmado com a
leitura de uma série de documentos do Departamento de Estado liberados para
consulta. Lyndon Johnson, o sucessor de Kennedy, simplesmente levou adiante a
política adotada pelo Presidente assassinado em novembro de 1963.
Na petição apresentada pelos advogados da família Goulart à Justiça brasileira,
é lembrado o fato de que vários embaixadores estadunidenses (no começo da
década de 60) queixaram-se de terem sido usados para dissimular atividades de
espionagem, mas a CIA sempre insistiu que a cobertura das embaixadas é
essencial a seu trabalho, porque inclusive sem a imunidade de que gozam as
propriedade diplomáticas, os códigos, arquivos e comunicações da central de
inteligência estadunidense não estariam em segurança.
Foi lembrado também que o atrito entre funcionários do serviço exterior e os
agentes da CIA tornou-se tão agudo ao fim do governo de Dwight Eisenhower que o
então presidente ex¬pediu uma ordem executiva, em novembro de 1960, onde
afirmava: “Os chefes de missões diplo¬máticas dos Estados Unidos no exterior,
como representantes do Presidente e agindo em seu nome, deverão possuir e
exercer, na medida em que permitam as leis e de acordo com as instruções que o
Presidente venha promulgar, a responsabilidade direta pela coordenação e supervisão
das atividades das várias agências que sirvam nos diferentes países”.
E tão logo foi empossado, lembram os advogados Trajano Ribeiro e Daniel Renout
da Cunha, John Kennedy apressou-se em reafirmar os poderes do Departamento de
Estado e dos embaixadores. Os embaixadores que eventualmente não aceitassem a
determinação ou simplesmente apenas a questionassem foram removidos e
substituídos.
A partir de então, e sem que fossem canceladas até hoje as determinações, as
embaixadas estadunidenses se tomaram uma espécie de linha auxiliar da CIA.
Os advogados da família Goulart apresentaram na Justiça brasileira a tese
segundo a qual a intervenção norte-americana no Brasil com a liberação de
verbas aos golpistas de 64 e a presença de uma esquadra naval norte-americana
nas costas brasileiras para, em caso de necessidade, apoiar a ação de derrubada
do Presidente brasileiro, foi um “ato de gestão”.
Ou seja, o governo estadunidense (Poder Executivo) agiu sem consultar o
Congresso (Poder Legislativo). Para entender melhor, foi uma ação diferente
da empreendida em 2003 contra o Iraque, quando para aprovar a ação militar
houve consentimento do Senado, caracterizando-se como “ato de império”. Não
vem ao caso se a decisão do Senado ocorreu com base na mentira segundo a qual
o Iraque possuía armas de destruição em massa, o que ficou comprovado não
existiram.
No caso do golpe de 64, ao intervir da forma como interveio, o governo dos
Estados Unidos, segundo os advogados Trajano Ribeiro e Renoult da Cunha, simplesmente
violou a Constituição norte-americana ao ferir a carta de princípios da
Organização dos Estados Americanos (OEA), que impede a intervenção direta ou
indireta de um estado estrangeiro sobre a ordem interna de um aliado dos EUA.
Um ato ilícito sob o ponto de vista da Constituição norte-americana, portanto,
não pode ser um ato de império.
Operação "Brother Sam" na costa brasileira em 1964.
NEGATIVAS DA JUSTIÇA
Mas a Justiça brasileira entendeu que a ação dos EUA foi um “ato de império”,
inviabilizando a continuação do processo contra o Estado estrangeiro em
território nacional, o que em linguagem jurídica é considerado “imunidade
absoluta de Jurisdição”.
As sucessivas negativas de recursos que impedem de colocar no banco dos réus
do Brasil os Estados Unidos, tanto da parte da 10a Vara Federal do Rio de
Janeiro, como do STJ, inclusive a de impedir que a ação seja encaminhada para
decisão do STF, colocam em dúvida se a Justiça brasileira tem mesmo interesse
em defender a soberania nacional ou se sente atemorizada com a solicitação de
julgar o Estado norte-americano em território nacional.
Reforça essa tese o fato de o Ministro do STJ, Félix Fischer ter decidido a
ação sem permitir que um recurso extraordinário pudesse seguir para o STF sob a
alegação de que uma petição não tinha sido apresentada em tempo hábil.
Mas os advogados comprovaram, mediante documento fornecido pelos Correios, que
informaram que o documento original havia chegado no prazo ao STJ, não tendo
sido juntado a tempo por falha administrativa do órgão judiciário. Isto é, o
próprio STJ extraviou o documento em questão, resta saber se deliberadamente ou
não. Os advogados alegam que esta questão foi ultrapassada quando o ministro
João Otávio de Noronha consagrou o entendimento de que mesmo que os originais
do agravo tivessem sido apresentados dentro do prazo “ratificavam-se os
fundamentos da decisão que negou seguimento a ação rescisória”. Ação que
combate o entendimento equivocado de que os Estados Unidos praticaram ato de
Império, quando a jurisdição brasileira é competente para julgar atos de
gestão.
Além disso, o que é ainda mais grave, os ministros do STJ, com exceção de
Nancy Andrighi e Humberto Gomes de Barros, concederam ao réu (EUA) a
prerrogativa, não solicitada, por sinal, de aceitar ou não abrir mão da
“imunidade de jurisdição”.
Trocando em miúdos, facilitaram o lado dos Estados Unidos, que com a decisão
fizeram a pergunta que favoreceu ao réu, dando margem à hipótese de que os
ministros queriam se livrar, para eles, do fardo de julgar o mérito da ação
interposta pela família de João Goulart. Pior, acabaram por declarar de
maneira ilegal que os Estados Unidos violaram a Carta da OEA sem que tivesse
direito de se manifestar.
Com isso, fica reforçada a dúvida que os ministros do STJ pouco se importam se
está em jogo verdadeiramente a soberania nacional.
Em razão da dificuldade encontrada para dar seguimento à ação, não se exclui a
possibilidade de a família Goulart fazer o mesmo que fez a família de Jacobo Arbenz,
o presidente deposto da Guatemala, em 1954. Os Arbenz deram entrada, e
ganharam, em ação na Justiça dos EUA apresentando o Estado norte-americano
como um dos responsáveis pelo golpe patrocinado pela CIA. Não foi divulgado o
valor que os EUA pagaram pelos danos causados à família Arbenz, mas a decisão
cria juris¬prudência e, caso os Goulart entrem com ação, obterão resultado
favorável ao pleito.
Para João Vicente, no entanto, o ingresso da ação na Justiça brasileira é um
recurso importante no sentido da afirmação e defesa da soberania nacional,
que, no entender dele, foi aviltada com o golpe que derrubou o presidente João
Goulart. João Vicente se baseia no fato de que a jurisdição se exerce nos
mesmos limites da soberania e o dano foi praticado em território brasileiro.
Daí a competência territorial para julgar o pedido de reparação.
A renúncia de jurisdição e competência para julgar o pedido da família Goulart,
sem que os Estados Unidos tivessem solicitado formalmente a imunidade de
jurisdição, é, sem dúvida, uma renúncia de soberania.
Não se exclui também a possibilidade, segundo admitiu João Vicente Goulart, se
a justiça negar totalmente a ação, de a família levar para o julgamento do
Tribunal de Haia. “Lamentavelmente, o Brasil terá de ser réu pelo fato de a
justiça negar a uma família o direito de julgar em território nacional o país
responsável por uma ilegalidade que levou o país a uma longa escura noite de 21
anos”, observou João Vicente Goulart.
Por estas e muitas outras ao longo dos anos, está na hora do Poder Judiciário
brasileiro ser passado a limpo, inclusive sepultar os vícios adquiridos ao
longo de 21 anos de ditadura e que continuam vigentes.
(*) Mario Augusto Jacobskind é jornalista.